CRÉDITO: PLURAL.JOR.BR

A violência simbólica é uma realidade comum na política, manifestando-se por meio de estereótipos de gênero que impõem padrões definidos por sujeitos que sustentam uma lógica de dominação masculina

Desde os primeiros movimentos sociais e feministas pela conquista dos direitos das mulheres e do exercício dos direitos políticos, a participação formal e o desempenho eleitoral feminino têm crescido significativamente no Brasil. Dados da Justiça Eleitoral mostram que, nas últimas décadas, mais mulheres têm se filiado a partidos políticos, registrado candidaturas e conquistado posições eletivas. Neste artigo, pretendo apresentar algumas perspectivas baseadas em evidências e na minha experiência política e jurídica, sem a intenção de esgotar o tema, pois devido a nossa diversidade cada pessoa tem uma percepção coletiva e uma percepção individual sobre as opressões e os desafios enfrentados. Somente por meio de um debate amplo e contínuo, bem como, com a conscientização de toda a sociedade sobre representação e violência poderemos avançar para uma política mais inclusiva e paritária.

De acordo com as estatísticas das eleições da Justiça Eleitoral em 2024, o número de mulheres filiadas a partidos políticos chegou a 7.583.929, representando 46,30% do total de filiações. Esse número representa um aumento em relação a 2020, quando havia 7.469.682 mulheres filiadas, correspondendo a 45,27% das filiações. Esses dados indicam um progresso tímido, mas significativo, na inclusão de mulheres nos partidos políticos. Quanto às candidaturas, em 2024, 152.946 mulheres se candidataram, resultando em 10.498 eleitas. Em comparação, em 2020, houve 180.216 candidaturas femininas, das quais 9.371 foram eleitas. Observa-se uma leve diminuição no número total de candidatas entre os dois ciclos eleitorais, mas um aumento no número de mulheres eleitas, o que reflete um avanço em termos de sucesso eleitoral.

A garantia do direito ao voto e à elegibilidade, reconhecida no Brasil em 1932 com a instituição do Código Eleitoral pelo Decreto nº 21.076, incorporado pela Constituição de 1934, foi um marco inicial fundamental para as mulheres. Desde então, foram criadas outras políticas afirmativas eleitorais de gênero com a finalidade de incentivar a participação e a conquista de mandatos por pessoas desse segmento social.

Entre essas políticas estão: as cotas de gênero para registro de candidaturas; tempo mínimo de propaganda partidária e eleitoral no rádio e na televisão específico para mulheres; financiamento partidário mínimo para a criação e manutenção de programas de educação e incentivo à participação feminina na política; aplicação mínima de recursos para o financiamento de candidaturas femininas e de pessoas negras; a possibilidade de inclusão, no registro de candidatura, da identidade de gênero, seja cisgênero ou transgênero, e da orientação sexual, como heterossexual, lésbica, bissexual, pansexual e assexual; a inclusão de informações sobre etnia e pertencimento à comunidade quilombola. Além disso, pode-se informar se a mulher possui algum tipo de impedimento de natureza física, mental, sensorial ou intelectual; e a tipificação da violência política contra as mulheres, com base na legislação eleitoral especial e também na penal. Esses têm sido passos importantes na busca por maior representatividade feminina nos espaços de poder e liderança. Esses avanços representam conquistas essenciais para a igualdade de gênero, mas ainda há muitos desafios a serem enfrentados para assegurar que as mulheres possam exercer plenamente seus direitos políticos.

No que se refere às cotas de registro de candidaturas, a Justiça Eleitoral tem adotado um rigor crescente no cumprimento desse direito, especialmente na aplicação de penalidades em casos de fraude.  Para guiar o entendimento judicial sobre fraudes, foi criada a Súmula 73 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que identifica fraudes com base em indicadores como votação zerada, ausência de atos de campanha e contas zeradas ou padronizadas.

Muitos partidos, especialmente em municípios, relatam dificuldades para recrutar mulheres interessadas em concorrer às eleições. Uma das justificativas apresentadas é a falta de capital econômico significativo entre essas mulheres, o que reforça a necessidade de investimentos públicos em suas campanhas. Contudo, em razão da autonomia partidária garantida pela Constituição, muitas candidatas recebem pouco ou nenhum recurso, comprometendo a viabilização de uma estrutura mínima e digna para suas campanhas. Além disso, algumas mulheres relatam dificuldades em obter doações por meio de financiamento coletivo, tanto pela falta de investimento inicial do próprio partido quanto pelos estereótipos que as associam a uma menor capacidade e força em comparação aos candidatos homens.

Relatos indicam que a violência política, ainda subnotificada, desmotiva e afasta muitas mulheres da vida pública. A Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021, foi criada para estabelecer normas de prevenção, repressão e combate a esse tipo de violência nos espaços e atividades relacionados ao exercício dos direitos políticos e funções públicas das mulheres. Essa legislação representa um avanço importante para promover um ambiente político mais seguro e inclusivo, assegurando, entre outras coisas, a participação feminina em debates eleitorais. Contudo, a lei ainda é pouco conhecida pela população e enfrenta desafios institucionais para sua plena aplicação. Para garantir sua eficácia, é essencial conscientizar a sociedade e capacitar os órgãos públicos para enfrentá-la.

Nesse sentido, a violência simbólica é uma realidade comum na política, manifestando-se por meio de estereótipos de gênero que impõem padrões definidos por sujeitos que sustentam uma lógica de dominação masculina. Essa estrutura perpetua a ideia de que os homens devem ocupar posições de liderança, enquanto as mulheres devem ser submissas. Assim, constrói-se uma cultura de desvalorização e submissão feminina, frequentemente de forma sutil, mas com grande impacto na autoestima e na percepção pública das mulheres. Esse tipo de violência torna-se evidente em comentários que associam o sucesso político e desempenho eleitoral das mulheres à aparência, sexualidade, estado civil, idade ou a supostas “qualidades femininas” consideradas como incompatíveis com a política, como delicadeza ou emotividade. Tais comentários sugerem que as mulheres não possuem a “força” e a “capacidade” necessárias para cargos e funções públicas. Esses discursos reforçam ideias e ações tradicionalmente impostas sobre papéis de gênero, limitando as mulheres a funções de apoio, enquanto os homens são vistos como líderes legítimos. Isso cria barreiras à participação feminina e perpetua a visão de que o ambiente político é um “território masculino”. A situação se agrava com o uso abusivo das mídias, que amplificam esses estereótipos e discriminações, tornando ainda mais difícil a superação dessas barreiras.

Destaco, ainda, que a violência psicológica praticada por filiados, lideranças políticas e até mesmo pela população. Muitas vezes, esses ataques começam antes mesmo do registro oficial das candidaturas, quando as mulheres manifestam interesse em concorrer ou buscam apoio partidário, e podem continuar mesmo após o encerramento das eleições. Caso não sejam eleitas, essas mulheres frequentemente enfrentam ataques que desvalorizam sua condição feminina, usando o resultado eleitoral como “prova” de que o espaço político não lhes pertence.

A objetificação das mulheres e as ameaças de violência física e sexual também são realidades constantes enfrentadas por mulheres na política, representando um grave obstáculo à participação feminina e ao exercício pleno de seus direitos democráticos. Esse tipo de ameaça não apenas coloca em risco a integridade física dessas mulheres, mas também gera medo e insegurança que muitas vezes as leva a desistir de suas candidaturas ou a adotar um perfil mais discreto, limitando sua atuação pública. As ameaças de violência sexual, em particular, são utilizadas como uma arma para intimidar e humilhar, buscando reafirmar o controle sobre os corpos e as escolhas das mulheres.

Um formato crescente de violência política é a violência digital, onde tecnologias são usadas para amplificar ataques por meio da disseminação instantânea de imagens, vídeos e áudios com mensagens depreciativas na internet e mídias sociais. Ferramentas como robôs, inteligência artificial, perfis falsos e ativistas digitais clandestinos facilitam a propagação de desinformação e discursos de ódio. O anonimato, a instantaneidade, a viralização de conteúdos falsos (como deep fakes) e a burocracia para denunciar crimes digitais tornam as redes sociais um ambiente fértil para ataques contra candidatas, reforçando a impunidade dos agressores.

No ambiente digital, a Justiça Eleitoral firmou um acordo administrativo com empresas como Facebook Brasil (responsável pelo Facebook, Instagram, Threads e WhatsApp), TikTok, LinkedIn, Kwai, X (antigo Twitter), Google e Telegram. Este memorando de cooperação comprometeu essas plataformas a adotar medidas contra desinformação, discurso de ódio e deep fakes. Entre as ações, destacam-se a criação da Biblioteca de Anúncios da Meta, que garante transparência nos gastos e alcance de anúncios políticos; o Project Shield, que protege agentes eleitorais de ataques; e canais específicos para denúncias, como o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE).

Além disso, a Resolução nº 23.610, de 18 de dezembro de 2019, que regulamenta a propaganda eleitoral, estabelece normas para que plataformas e usuários adotem práticas éticas e seguras, garantindo às vítimas o direito de resposta quando candidatos, partidos ou coligações são atingidos por afirmações caluniosas, difamatórias ou inverídicas, conforme o artigo 58 da Lei nº 9.504/97. No entanto, a dificuldade de acesso à justiça faz com que o direito de resposta e retratação nem sempre seja efetivamente assegurado.

Ressalto que a Lei nº 14.192/2021, em seu Art. 7º, determinou que os partidos políticos deveriam adequar seus estatutos às disposições dessa lei no prazo de 120 dias, adotando medidas para combater a violência contra as mulheres. No entanto, relatos indicam que, no âmbito partidário, ainda faltam acolhimento e segurança efetiva para as mulheres. Muitas delas são silenciadas ou desacreditadas, hesitando em denunciar abusos por medo de serem revitimizadas ou por desconfiança de que seus agressores serão punidos. A percepção de que os partidos, isoladamente, possam combater eficazmente a violência interna ainda é limitada, reforçando a necessidade de uma rede de apoio mais sólida e acessível para essas mulheres.

A impunidade ainda predominante agrava os atos de intimidação, fazendo com que muitas mulheres hesitem em denunciar abusos por medo de retaliações ou por falta de confiança na proteção institucional. A ausência de respostas eficazes a essas ameaças alimenta a cultura de violência e impunidade, evidenciando a necessidade urgente de mecanismos específicos de proteção que assegurem às mulheres o direito de participar da vida política sem temer pela própria segurança e dignidade.

Apesar dos avanços em legislações e políticas, essas medidas ainda são insuficientes para combater e prevenir plenamente as agressões, pois muitos agressores continuam impunes, e diversas mulheres seguem desamparadas. Esse desamparo é causado não apenas pela falta de conhecimento sobre seus direitos, mas também pela dificuldade de acesso à Justiça e pela precariedade dos serviços públicos em muitos municípios.

Para que o ambiente político se torne verdadeiramente seguro e inclusivo para as mulheres, é fundamental adotar ações adicionais e mais robustas. Entre essas medidas, destacam-se o aprimoramento das normas de proteção, a conscientização da população sobre a importância da representatividade feminina, a incorporação de uma perspectiva multidisciplinar e interseccional, além do fortalecimento e da integração dos mecanismos institucionais de apoio às vítimas e de enfrentamento da violência política. Essas iniciativas são essenciais para assegurar uma participação feminina saudável e digna, promovendo o exercício pleno da cidadania e contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.


REFERÊNCIAS

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