CRÉDITO: PLURAL.JOR.BR

Embora a extinção do regime jurídico único tenha sido confirmada no julgamento da ADI 2135, não há novidade para o ordenamento jurídico brasileiro, que já experimentou os efeitos dessa extinção por quase uma década, entre 1998 e 2007

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2135, em 6 de novembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade de um trecho da Reforma Administrativa de 1998 (EC nº 19) que havia suprimido a obrigatoriedade de regimes jurídicos únicos e planos de carreira para servidores da administração pública direta, autarquias e fundações públicas federais, estaduais e municipais.

Com isso, verificou-se um cenário de apreensão entre os cidadãos, motivado por incertezas geradas pela ampla circulação de informações divergentes acerca dos impactos da decisão. Entre os pontos mais debatidos, destacam-se questionamentos quanto à manutenção da estabilidade dos servidores públicos e à continuidade da realização de concursos públicos para ingresso na administração direta e indireta. Essa atmosfera de dúvidas reflete a complexidade do tema e a necessidade de um diálogo claro e fundamentado para esclarecer à sociedade os desdobramentos jurídicos e administrativos da decisão proferida.

Breve histórico

Ao ser promulgada em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil previa, em seu artigo 39, [1] que cada ente da federação deveria instituir o regime jurídico único e planos de carreira para os seus servidores públicos. Essa determinação reflete a unificação na forma de contratação, que, por razões de adequação jurídica, foi a estatutária, com padrões de remuneração legalmente fixados por meio dos planos de carreira. Após 10 (dez) anos, sobreveio a Emenda Constitucional nº 19, [2] fruto da Reforma Administrativa, que alterou o referido dispositivo para extinguir a obrigatoriedade do Regime Jurídico Único (RJU), o que possibilitou a contratação de servidores públicos pelo regime da CLT.

No entanto, três partidos políticos [3] propuseram uma ação direta de inconstitucionalidade para questionar a alteração sob o fundamento de que a referida emenda constitucional aprovada pelo Congresso não levara em consideração o processo legislativo previsto na Constituição da República. De acordo com o exposto, a Câmara dos Deputados não teria aprovado a nova redação para o artigo 39 em dois turnos, como exige o texto constitucional.

No âmbito dessa ação, o Plenário do STF suspendeu a vigência da alteração questionada em 2007, garantindo a permanência do texto original da Constituição como válido desde aquele ano até o presente momento. Em uma linha do tempo, delineia-se o seguinte cenário: de 1988 a 1998, a contratação de servidores públicos ocorreu exclusivamente sob a égide do regime jurídico único; de 1998 a 2007, coexistiram no ordenamento jurídico a contratação de servidores pelo regime celetista (CLT) e pelo regime estatutário do respectivo ente federativo; de 2007 até 2024, restabeleceu-se a unificação na forma de contratação, exclusivamente estatutária.

No julgamento definitivo, a maioria do Plenário entendeu que não houve violação ao processo legislativo, porque o texto fora aprovado em segundo turno na Câmara apenas em ordem diferente da redação avaliada em primeiro turno. A premissa central do fundamento é que a modificação no lugar de um texto (deslocamento do dispositivo) não é suficiente para desfigurar a proposição legislativa.

Portanto, revogam-se os efeitos da decisão cautelar proferida em 2007, que mantinha a vigência do texto original, e reinaugura-se a vigência da Emenda Constitucional nº 19/1998, que suprime a obrigatoriedade do regime jurídico único (RJU). Com isso, surgem os questionamentos acerca da aplicação temporal da decisão e os seus reflexos futuros, o que será analisado a seguir sob a perspectiva jurídica.

A extinção do Regime Jurídico Único

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a decisão proferida pelo STF, que reinaugura os efeitos da Emenda Constitucional nº 19/1998, só terá efeito sobre as futuras contratações, sem qualquer mudança de regime dos atuais servidores. Mas quais são esses efeitos? No que consiste o regime jurídico único e o que significa a supressão de sua obrigatoriedade?

O Regime Jurídico Único consiste em um conjunto de normas que regula a relação entre os servidores públicos e a Administração Pública. No âmbito federal, por exemplo, tal regime é instituído pela Lei nº 8.112/1990. Significa dizer que a União, Distrito Federal, estados, municípios e a administração pública indireta só podem contratar de uma forma.

O RJU não se confunde com a imposição do regime estatutário. Se se observar a redação inicial da Constituição antes da referida emenda, ver-se-á que a obrigatoriedade do RJU não vincula o ente federativo à adoção exclusiva do regime estatutário ou celetista. A opção pelo regime estatutário ocorreu por razões lógico-jurídicas. Há carreiras que possuem uma relevância singular para o Estado, de modo que não podem estar submetidas ao vínculo celetista, não apenas pela ausência de estabilidade, mas também porque seu funcionamento exige um regime jurídico específico.

É por isso que, desde a promulgação da Constituição, em 1988, até a publicação da Emenda Constitucional nº 19, em 1998, e, posteriormente, após a decisão cautelar proferida na ADI 2.135, em 2007, até novembro de 2024, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou novo julgamento sobre o tema, o regime jurídico adotado para os servidores públicos foi o estatutário. Embora os entes federativos possuíssem a prerrogativa de instituir o regime celetista, a exclusividade imposta pela norma constitucional inviabilizava a aplicação de um regime próprio a carreiras cujas atividades, como já mencionado, são incompatíveis com as disposições da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Com a nova redação conferida ao artigo 39 da CRFB pela Emenda Constitucional nº 19, o regime jurídico único (RJU) deixou de ser obrigatório. Contudo, isso não implica a extinção do regime estatutário, mas, sim, a possibilidade de coexistência deste com o regime celetista, a critério do ente federativo que assim o considerar adequado. Com a supressão da obrigatoriedade do RJU, o Estado passou a ter discricionariedade para selecionar os cargos que dispensam o regime estatutário e as prerrogativas a ele associadas, considerando que as funções desempenhadas não configuram serviços típicos de Estado que exijam tais prerrogativas. Dessa forma, é possível que algumas contratações sejam formalizadas sob o regime celetista, enquanto outras permaneçam vinculadas ao regime estatutário.

É importante mencionar que a definição do regime jurídico aplicável aos cargos públicos não é facultativa a cada órgão isoladamente, pois a criação do cargo depende de previsão legal específica. É a lei que estabelecerá o regime jurídico ao qual o cargo estará submetido, garantindo, assim, a necessária segurança jurídica.

Também é relevante destacar que a Emenda Constitucional nº 19 produziu seus efeitos anteriormente, por 9 (nove) anos, entre 1998 e 2007, quando sobreveio a decisão liminar na ADI para suspender os seus efeitos, restaurando a disciplina do texto original da Constituição. Desse modo, o que se passará a experimentar agora com o julgamento definitivo da referida ação pela constitucionalidade da alteração não é nenhuma novidade. Entre 1998 e 2007, não havia o regime jurídico único, e não houve por isso a extinção do regime estatutário e dos concursos públicos: era possível a contratação tanto pelo regime celetista quanto estatutário.

Um exemplo emblemático é a Lei nº 9.986, de julho de 2000, por meio da qual foi fixado o regime celetista para as contratações das agências reguladoras. Contudo, tal disposição foi alvo de questionamento na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) [4] ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, que argumentou a incompatibilidade do regime celetista com as atividades desempenhadas pelas agências, especialmente aquelas de poder de polícia, regulação e fiscalização, típicas do Estado. Em decisão liminar, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a eficácia de diversos dispositivos da referida lei, incluindo os artigos que estabeleciam o regime celetista, sob o fundamento de que as funções exclusivas de Estado, como as exercidas pelas agências, demandam a adoção de regime estatutário, que assegura estabilidade e imparcialidade no exercício do poder público. A Corte destacou, ainda, que a ausência de tais garantias comprometeria a autonomia funcional indispensável para o desempenho técnico e isento dessas atividades.

Nota-se, portanto, que o questionamento da referida norma não se deu pela impossibilidade constitucional da contratação pelo regime da CLT de forma geral, mas sim no caso concreto, em virtude da natureza das funções desempenhadas nos cargos em questão.

Tudo isso serve para que se compreenda duas coisas: (i) a convivência de regimes jurídicos para a contratação por parte do Estado não é uma novidade; e (ii) essa convivência, materializada pela supressão do regime jurídico único, não impõe a extinção de concursos públicos para o preenchimento de cargos submetidos ao regime estatutário.

Nesse sentido, é pertinente ponderar sobre o critério a ser adotado na eleição do regime jurídico aplicável. Como demonstrado, embora exista certa discricionariedade nessa escolha, ela está limitada nos casos em que a função exercida seja considerada típica de Estado. Assim, pode-se concluir que caberá ao Supremo Tribunal Federal, em última instância, determinar quais carreiras deverão ser necessariamente submetidas a um regime jurídico específico, considerando que é a Suprema Corte a autoridade competente para reconhecer, mediante provocação formal por entidade ou autoridade legitimada, a natureza típica de Estado de determinada função.

Conclusão

A decisão do STF acerca da extinção do regime jurídico único gerou importantes reflexões e suscitou diversas dúvidas a respeito do tema. A análise conduzida ao longo deste texto possibilita elucidar algumas das principais dúvidas decorrentes dessa mudança.

A extinção do regime jurídico único não implica o fim do regime estatutário, mas sim a possibilidade de coexistência entre este e o regime celetista. A escolha do regime aplicável dependerá de regulamentação específica e observará critérios que respeitem a natureza das funções e as necessidades administrativas. Além disso, tanto para as contratações sob o regime estatutário quanto para aquelas regidas pela CLT, permanece a exigência constitucional de concurso público, assegurando a igualdade de oportunidades e a seleção com base em critérios objetivos e meritocráticos.

Quanto à estabilidade, esta permanece como uma prerrogativa exclusiva dos cargos públicos estatutários, não sendo estendida aos vínculos celetistas. Mesmo sob o regime jurídico único, já existiam empregados públicos contratados pelo regime da CLT em empresas públicas e sociedades de economia mista. Com a possibilidade de contratação celetista por órgãos da administração direta, permanece a ausência de estabilidade, pois esta deriva da natureza do vínculo, e não da entidade contratante. Vale ressaltar que, no julgamento do Tema 1.022, o STF assegurou que, mesmo em contratos celetistas, a dispensa de empregados públicos deve ser acompanhada de uma justificativa formal, ainda que sucinta, reforçando a proteção jurídica desses vínculos.

Por fim, é fundamental destacar que a decisão do STF não autoriza a transformação do regime jurídico de servidores públicos atuais. Assim, eventuais alterações na natureza do vínculo jurídico serão aplicáveis apenas aos novos cargos, garantindo que mudanças institucionais não comprometam os direitos dos servidores já investidos. Todavia, é importante pontuar que não há direito subjetivo ao regime jurídico indicado no edital de concurso público. Caso a natureza do vínculo seja alterada antes da nomeação, a mudança será plenamente válida, desde que respeitada a legislação aplicável.


[1] Redação original: Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.

[2] A redação do artigo 39 passou a ser: Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes.

[3] PT, PDT e PCdoB.

[4] Trata-se da ADI 2310, cujo julgamento ficou prejudicado em razão da revogação do dispositivo questionado por lei superveniente.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

Abrir conversa
Clique para chamar o A&C no WhatsApp
Olá, somos o A&C 👋 Como podemos lhe ajudar?