Não vale mais investir em infraestrutura para que os recursos possam ser julgados com maior agilidade, ao invés de manobrar a legislação para que se prenda alguém sem a condenação definitiva?
Em recente decisão (Rext 123.534-0), o Supremo Tribunal Federal decidiu que é possível o início do cumprimento da pena imediatamente após a condenação no Tribunal do Júri. Ou seja, ao contrário dos demais procedimentos, julgados por um Juiz togado, nos quais se adota a regra geral de recorrer da pena em liberdade, no rito vinculado ao Júri tal garantia caiu por terra. O entendimento é de que não há nessa prisão imediata risco à violação do princípio constitucional da presunção de inocência, já que a culpa do réu, em tese, já teria sido reconhecida pelos jurados.
A principal discussão do julgamento e seu resultado se dá no âmbito da preponderância de princípios. No caso, entendeu-se que a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri faz com que a condenação nessa esfera afaste o princípio da presunção da inocência. De acordo com o Min. Luís Roberto Barroso, Relator do caso, a decisão do Júri é insubstituível: “1. O direito à vida é expressão do valor intrínseco da pessoa humana, constituindo bem jurídico merecedor de proteção expressa na Constituição e na legislação penal (CF, art. 5º, caput, e CP, art. 121). 2. A Constituição prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5º, XXXVIII, d). Prevê, ademais, a soberania do Tribunal do Júri, a significar que sua decisão não pode ser substituída por pronunciamento de qualquer outro tribunal.”.
É interessante pontuar, no entanto, que a comparação entre os dois princípios constitucionais deve ser feita com cautela e analisada no caso concreto, não devendo ser permitida a automática valoração de preponderância de um sobre o outro. Não é como se a decisão do Júri não admitisse qualquer tipo de reforma. É, de fato, soberana, mas pode ser anulada caso esteja em desacordo em relação às provas colhidas nos autos.
Ademais, como já debatido no âmbito da execução provisória da pena, a Constituição não permite que penas sejam executadas antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Não há distinção entre os tipos de sentença, ou seja, sendo ela proferida pelo Júri ou pelo Juiz togado, é necessário aguardar o trânsito em julgado para o cumprimento da condenação.
Quando, no caso concreto, existirem elementos que permitam a aplicação de prisões cautelares, nada impede sua decretação. No entanto, a decisão parece querer corrigir uma ineficiência do sistema judiciário – sua conhecida morosidade – criando um atalho inconstitucional.
A presunção de inocência que incide em um caso de crime comum, que permite ao acusado recorrer em liberdade, não pode ser afastada em razão de a decisão ter sido tomada pelo Júri. É princípio inerente ao direito penal e permitir o seu afastamento, data venia, afronta a Carta Magna.
Como no Júri são julgados crimes considerados mais graves pela sociedade, e as penas aplicadas são de grande monta, é normal que o clamor social seja pela decretação da prisão desde logo. O povo não quer ver um condenado saindo “pela porta da frente”. No entanto, um dos papeis fundamentais do judiciário é justamente se afastar desse imediatismo e verificar se, no caso concreto, existem indícios de autoria e materialidade suficientes contra o réu. O duplo grau de jurisdição – outro princípio constitucionalmente garantido – faz parte dessa verificação.
E mais, justamente em razão da gravidade abstrata de tais crimes, e do grande interesse midiático que eles atraem, é que se deve tomar um cuidado ainda maior na decretação da prisão. O que se busca questionar é se não vale mais investir em infraestrutura para que os recursos possam ser julgados com maior agilidade, ao invés de manobrar a legislação para que se prenda alguém sem a condenação definitiva.
A discussão é antiga. Há muito se fala na dificuldade que o judiciário tem de lidar com tantas demandas, e por isso a demora nos julgamentos, e, consequentemente, na prisão definitiva de um acusado. A decisão do STF, no entanto, não é uma solução deste problema, e sim uma cortina de fumaça que apenas confunde o jurisdicionado.
Não se questiona, ressalta-se, a necessidade da prisão preventiva de autores considerados perigosos demais para continuar a vida em sociedade enquanto estão sendo julgados por seus crimes. Nesses casos, não se discute que os requisitos legais estão preenchidos. Ou seja, caso a liberdade do réu coloque em risco a segurança social e a aplicação da lei penal, não há qualquer impedimento à decretação da prisão desde logo.
A discussão se refere aos casos concretos em que a liberdade do réu não ocasiona nenhum tipo de perigo. A decisão dos jurados pode ser acirrada, a votação pode ser de 4×3 pela condenação, por exemplo. Será que permitir que o réu ainda considerado inocente perante a Constituição Federal, já que não houve o esgotamento de recursos, saia do Júri aprisionado nesses casos é a forma correta de lidar com a situação?
Parece que não. Ainda mais quando se considera o atual panorama da superlotação carcerária brasileira. Permite-se o início do cumprimento de uma pena incerta em ambiente insalubre e degradante, de modo que uma posterior absolvição poderia ensejar, inclusive, uma condenação do Estado em danos morais pelos anos que o acusado, no fim das contas, inocente, passou no sistema carcerário.
Outra consequência é o possível aumento da realização de júris com o banco dos réus vazio. Os que preferem não correr o risco de prisão logo após a sessão de julgamento se ausentarão, distanciando-se ainda mais da plena defesa, mesmo que por própria conta e risco.
Enfim, o momento do início de cumprimento da pena é assunto delicado e permite as mais diversas opiniões, tanto é que a posição em relação à execução provisória da pena (aquela que ocorre antes da condenação definitiva) é frequentemente revista. Diferenciar esse momento para crimes comuns e crimes dolosos contra a vida, no entanto, é uma inovação interpretativa que não parece ter respaldo constitucional, ainda mais quando o argumento utilizado para autorizar a medida é a preponderância de um princípio constitucional sobre outro.