Buscando conformar as divergências em sua Corte, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela parcial retroatividade das disposições da reformada Lei de Improbidade Administrativa
Em sua etimologia, a palavra Improbidade, remete à uma atitude repleta de maldade; perversidade, desonestidade ou imoralidade. [1] Do latim: “(…) improbidade revela a qualidade do homem que não procede bem, por não ser honesto, que age indignamente, por não ter bom caráter, que não atua com decência, por ser amoral”. [2]
Efetivando o previsto no artigo 37, §4º da Constituição Federal, a Lei de Improbidade (Lei 8.429/92), disciplina o regime de responsabilização dos agentes públicos por condutas ímprobas, buscando tutelar o patrimônio público e social. Em sua redação original, a Lei Federal previu três modalidades de improbidade administrativa, respectivamente: atos que importem em enriquecimento ilícito, atos que causam prejuízo ao Erário, e atos que atentam contra os princípios da administração pública.
O próprio texto constitucional já declara que a prática de tais condutas importará na suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade de bens e ressarcimento ao erário. Nesse sentido, predomina o entendimento de que, por seu caráter constitucional e por seu viés evidentemente punitivista, a aplicação do instituto deve respeitar o sistema de princípios e garantias fundamentais.
Dentre esse contexto, em toda a vigência do texto original da LIA, perduraram diversas discussões quanto as amplitudes e excessividades de suas disposições, o que contribuiu para as profundas modificações feitas pela Lei 14.230/2021.
Uma das principais críticas se voltava à paradoxal “modalidade culposa” de improbidade, que ignorando a etimologia da conduta improba, que tem ligação intrínseca com a má índole do transgressor, admitia a responsabilização do agente público, mesmo que agisse sem intenção de cometer o ato.
Atendendo a essa latente necessidade de reformulação, foi sancionada em 25 de outubro de 2021, a lei 14.230, que representou uma verdadeira reforma legislativa, alterando profundamente o texto antigo, a fim de corrigir as lacunas e excessos previstos anteriormente.
O problema da Improbidade por conduta culposa, foi corrigido já no artigo 1º da Lei, que tipifica como atos de improbidade “as condutas dolosas”, descritas nos artigos 9, 10 e 11, e ainda se presta a definir o dolo como “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado” “(…) não bastando a voluntariedade do agente”.
Essa alteração, por expressamente extinguir um tipo de improbidade, gerou debates quanto à sua aplicação aos casos anteriores à vigência da nova redação, em atenção ao princípio da retroatividade da norma mais benéfica, uma vez que, embora o artigo 5º, caput, inciso XL, da Constituição Federal faça referência apenas à “lei penal”, o mesmo deve ser interpretado como um princípio jurídico geral contra qualquer manifestação repressiva do jus puniendi estatal.
Ademais, essa foi a mens legis almejada pelo legislador, já que durante a tramitação do Projeto de Lei n° 2.505/2021, que deu origem a Lei 14.230/2021, consta no parecer da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, que o Senador Dário Berger, propôs emenda ao projeto para constar expressamente que as alterações dadas pela proposição, se apliquem desde logo em benefício dos réus.
Em resposta, o Relator, Senador Weverton, deixou de acolher a proposta, sob justificativa de que a emenda não seria necessária, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça já vinha aceitando a aplicação da retroatividade de lei mais benéfica em favor do réu. [3]
Outro elemento a ser observado é o fato de que a retroatividade em benefício do acusado é princípio expressamente previsto no artigo 9º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, internalizado pelo Estado Brasileiro em 1992 com do Decreto No 678.
No entanto, esse impasse chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do Agravo em Recurso Extraordinário 843989, tratando de ação originalmente interposta pelo INSS, imputando suposta conduta negligente a uma advogada contratada pelo instituto. Dentre extensos votos, houveram diferentes opiniões, o que levou à fixação do Tema 1199 em Repercussão Geral, [4] apresentando uma mitigação de entendimentos.
Ao fim, ficou decidido que a norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa -, é irretroativa, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada ou durante o processo de execução das penas e seus incidentes, no entanto, se aplica aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado.
Anota-se que os ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, e Gilmar Mendes, reconhecem que se deve assegurar um mínimo de garantias constitucionais ao acusado por improbidade administrativa, uma vez que o mero processamento produz efeitos extremamente gravosos na ceara da liberdade individual do cidadão.
A tese fixada já vem sendo adotada nos mesmos termos pelo Superior Tribunal de Justiça, que vem admitindo a aplicação retroativa apenas aos atos de improbidade culposos, sem trânsito em julgado, inclusive na hipótese de não conhecimento do recurso.
[1] IMPROBIDADE. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2022. Disponível em: https://www.dicio.com.br/improbidade/.
[2] Silva, De Plácido e. Vocabulário jurídico; atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Priscila Pereira Vasques Gomes – 31. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014. (pg 1.092)
[3] BRASIL. Senado Federal, Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Parecer SF nº 14, de 2021, 29 de setembro de 2021, Relator Senador Weverton, p. 44. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9022430&ts=1635251854642&disposition=inline
[4]https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4652910&numeroProcesso=843989&classeProcesso=ARE&numeroTema=1199
Sobre o/a autor/a
Bruna Elicker Dellai
Advogada e pós-graduanda em Processo Civil pela Escola Paranaense de Direito. Tem experiências de estágio na Procuradoria Geral do Estado do Paraná, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Atualmente é servidora do Tribunal de Justiça do Paraná, atuando como Assistente de Desembargador.